terça-feira, 19 de dezembro de 2017

"Educar é um ato de amor"



Era setembro de 1987 quando a diretora da Escola Municipal Pequeno Príncipe me disse que eu ia dar aula na quarta série. Dei um grito tão forte de contentamento que a velha gestora quase teve um troço. Fui para casa pensando num monte de estratégias, dinâmicas, jogos, brincadeiras para deixar meus alunos com um desejo enorme de querer aprender. Eu viajava no meu quarto ensaiando as aulas como se fosse uma peça de teatro e imaginava a cara dos meninos e das meninas com os olhos esbugalhados pensando num monte de coisas.

            Meu currículo tinha sido selecionado, entre dezenas de outros, para uns contratos emergenciais que a Secretaria de Educação estava realizando. Numa das cláusulas dizia que embora fosse de três meses – também chamado por eles de período de adaptação, meu contrato poderia ser prorrogado por até dois anos, se o contratado fizesse jus e eu, certamente estava disposto a fazê-lo.

Fazer pedagogia foi uma opção muito pessoal. Tive que ir de encontro a vários obstáculos, entre eles, meus pais e minha namorada. Ninguém acreditava que eu tinha escolhido um curso que ninguém mais acredita, dá pra acreditar?

“Cara, faz medicina, isso é que é profissão!” berrava um amigo.“É melhor ser advogado ou engenheiro, porcaria de professor!” dizia outro. “Ninguém mais quer ser professor! Faz informática, meio ambiente, turismo, mas esquece isso!” Protestava meu pai.

Mas eu queria ser pedagogo, queria nadar contra toda essa correnteza de descrença. Eu não queria ser mais um, queria fazer a diferença e tinha certeza que meus alunos iriam me ajudar nisso, mesmo sabendo que as escolas ainda continuavam sendo dominadas por uma concepção pedagógica tradicional. Eu sei que podia quebrar aquela ritualização de procedimentos escolares obsoletos, semelhantes a planos pré-históricos, cujo método dominante era chamado de aula expositiva.

Estava disposto a enfrentar um monstro que não se preocupava com o exercício da cidadania, com o que os nossos alunos queriam ou não aprender; um monstro que não estava nem aí para a formação do educando que sempre foi capaz de elaborar conhecimentos, habilidades, atitudes, valores, formas de pensar e atuar nesta ou em outra sociedade. Um monstro que fez da aprendizagem sinônimo de mecanização, um monstro que não está aberto para o diálogo, nem tampouco para o processo de rever conceitos. Um monstro chamado sistema.

Acontece que eu cria nos avanços de todas as pesquisas na educação e no ensino; contava com a ciência, a tecnologia e com as aulas que despertavam o gostinho de “quero mais”. Com a força de vontade que brotava dentro de mim; com os sonhos que não morriam; com os desejos que não paravam de germinar eu sabia que podia vencer. Sabia também que só isso não bastaria. Era preciso mais do que novas metodologias, recursos didáticos ou instrumentos tecnológicos.

Todavia, minha fé na educação era maior que as dificuldades que haveriam de surgir. Minha força de vencer era a prova das coisas que eu ainda não conseguia ver, mas sabia que estavam lá, me esperando, torcendo, acreditando.

Entretanto, eu queria que eles soubessem que educar é muito mais que um sacerdócio. “Educar é um ato de amor[i]”.



Pawlo Cidade, escritor e ativista cultural.







[i] Esta frase é atribuída a Paulo Freire.

sábado, 1 de julho de 2017

“Adeus, vovô. Vou sentir sua falta também. Dá um beijo na vovó por mim”.



- VOVÔ, VOVÔ... ACORDE! Vai pra cama, já está ficando tarde. Está chovendo, o senhor não está vendo?... – Johan puxava a mão esquerda do velho. Arron permanecia calado, insensível, na cadeira de balanço que às vezes costumava por na varanda, sempre que a noite chegava, para ouvir o canto da natureza. “A melodia que vem da mata, me acalma” – Comentava. A chuva forte foi diminuindo de intensidade. O vento e os trovões pararam. Johan não tinha medo deles e, apesar do pai sempre brincar dizendo que aqueles fenômenos da natureza indicavam que Deus estava dando uma geral no céu, preferia ficar na cama, embaixo do seu cobertor amarelo, com desenhos de aviões e carros de corrida.

Entretanto, aquela noite tinha sido diferente. Saiu do quarto e foi ver porque o avô ainda não havia entrado. Arron tinha medo de trovões. Os trovões eram estrondos muitos similares às bombas que caiam sobre Amsterdam, no dia em que os alemães invadiram e dominaram o país. Arron e seu pilotão jamais esqueceu daquele fatídico dez de maio de mil, novecentos e quarenta. Eles resistiram heroicamente por cinco dias ao ataque, mas acabaram sendo forçados a depor as armas pelos tanques do exército inimigo. Ele, e mais três companheiros, entre eles, Mulisch, ficaram escondidos num buraco de esgoto por uma semana, enquanto as bombas continuavam caindo sobre a cidade. Seu olfato nunca conseguiu se acostumar ao fedor que penetrava em suas narinas durante o tempo que permaneceu como um animal acuado, em meio a dejetos humanos e ratos. Esse era também um dos motivos que “banhava-se” em perfume todos os dias, independente da visita da enfermeira Ida, como costumava brincar Johan e Sita.

“Vovô?” O pequeno Johan engoliu em seco quando percebeu que ele não respondia. Pensou em pegar um graveto e colocar na boca do avô, como fazia todas as vezes que o velho dormia de boca aberta. Mas os olhos e a boca estavam hermeticamente fechados. Ele encostou lentamente o ouvido direito no peito do avô. O coração não batia mais.

O pequeno Johan chorou. Depois, subiu no colo do avô, beijou-lhe o rosto, abraçou-o carinhosamente, e antes de adormecer disse: “Adeus, vovô. Vou sentir sua falta também. Dá um beijo na vovó por mim”.

Trecho de um livro inédito: "O Diário do Beija-Flor", de Pawlo Cidade.

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